As coisas que a gente faz para se torturar

Martha Medeiros

Tem gente com vocação real para carrasco e que não sossega enquanto não sacrifica a si próprio

Adianta ficar batendo a cabeça na parede porque perdeu uma oportunidade rara de chamar uma garota para sair? Entendo, você não costuma encontrá-la, não sabe seu telefone, seu sobrenome, seu endereço, onde ela trabalha, teve a chance e deixou escapar, mas vai passar quantos meses se lamuriando como se ela fosse a última mulher do mundo?

E isso ainda é tortura leve. Tem gente com vocação real para carrasco e que não sossega enquanto não sacrifica a si próprio. Que gente? Todos nós.

Há os que têm certeza de que, se estão vivendo uma boa fase hoje, pagarão o preço amanhã, e imaginam direitinho como: sofrerão um acidente, perderão o emprego, serão traídos. Não é possível que esteja tudo bem, assim, no mole, de graça. Algo vai acontecer, é só colocar a imaginação pra funcionar.

Falei em traição? Bah! Um clássico. O relacionamento de vocês é mais firme que o caráter do Dunga, não há o menor indício de que possa entrar água, mas ainda assim você não resiste em se martirizar. Qualquer 10 minutos de atraso, qualquer ligação telefônica não atendida, qualquer desatenção vira indício de que algo está sendo escondido. E você não se aquieta enquanto não descobre o que não existe, enquanto o outro não confessa o crime que não cometeu.

Além disso, há uma doença secreta se desenvolvendo no seu estômago, no seu cérebro, na sua corrente sanguínea. Os exames não revelaram, os médicos não descobriram, os sintomas não apareceram, mas são favas contadas, você está condenado.

Pensamentos mórbidos com morte. Imaginar cenas de os filhos correndo risco, de o apartamento sendo invadido por marginais, de você morrendo sozinho sem ninguém descobrir seu corpo por dias: filmes de terror que não saem de cartaz na sua cabeça.

Relutamos em aceitar que, se a tragédia não bateu à nossa porta, não foi por engano, e sim por uma contingência da vida. Não bateu, passou reto, não voltará para cobrar a conta que não é devida.

Mas só um curso de imersão budista com o próprio Dalai Lama para fazer a gente abandonar os grilhões a que nos aprisionamos voluntariamente. Imagina se logo você será poupado. Quá! Você não é bobo, não quer ser pego de surpresa, então passa a vida se preparando psicologicamente para a dor, torturando a si mesmo para, quando chegar a hora, estar tão acostumado com o sofrimento que nem doerá tanto.

É a danada da culpa que não permite que sejamos felizes sem ter que pagar penitência por tamanho privilégio.